Mulher ganha na Justiça direito a indenização de R$ 1 milhão de família de SP que a criou: ‘Eu me sentia como uma escrava’

Técnica de enfermagem vai receber em dobro por trabalhar em feriados
junho 24, 2019
Gerente-geral recebe horas extras após a sexta hora com base em PCS anterior
julho 4, 2019

TRT da 2ª Região considerou que Solange vivia em condição análoga a escravidão na casa onde viveu por quase 30 anos. Cabe recurso ao TST. Advogado da família disse que vai recorrer.

“Eu me sentia como uma escrava”, é com essa frase que Solange define os quase 30 anos em que passou na casa de uma família na Zona Sul de São Paulo. Em entrevista exclusiva ao G1, em parceria com o Fantástico, ela contou sobre as humilhações que viveu e quando tomou coragem de buscar seus direitos na Justiça, onde conseguiu uma indenização de R$ 1 milhão por ter sido submetida a situação análoga à escravidão.

O advogado da família condenada disse que esse tipo de relação “jamais aconteceu entre as partes” e que vai recorrer da decisão. Ainda cabe recurso da decisão ao Tribunal Superior do Trabalho.

Regras da casa

Solange conta que itens básicos de higiene como absorventes e papel higiênico eram restritos na casa. “Eu não usava papel higiênico, papel higiênico era da família, eu usava jornal”, conta ela. Solange ainda cortava o absorvente da patroa para poder usar.

Ela diz também que sempre utilizava roupas largas e que não podia ter cabelo comprido, pois a família achava que era falta de higiene. “Ela falava que cabelo grande era falta de higiene, mas eu via as netas dela ter cabelo grande e não entendia. Eu fiquei revoltada uma vez que eu raspei na máquina zero”.

Uma vizinha de Solange, que não quis se identificar, confirma a versão dela e diz que a conheceu ainda adolescente e que ela sempre utilizava roupas muito grandes e cabelo curto. “Ela se vestia com roupas maiores que o número dela, sapatos maiores, porque eu acho que essas roupas eram doadas”, diz a vizinha.

Ela conta também que tentava se aproximar de Solange, mas era impedida. Quando a patroa saía de casa ela batia na porta para tentar falar com a menina, mas Solange falava que estava trancada.

“Eu pensava, mas a Karina pode pedir ajuda, a janela é próxima da rua, eu ficava imaginando”, diz a vizinha. “É muito triste nos dias de hoje uma pessoa ser prisioneira e ninguém fazer nada para ajudar, ela ficou muito tempo presa, não dá para acreditar que nessa situação que a gente está hoje uma pessoa viver isso, é triste de encarar”, completa ela.

Trabalho

O trabalho sempre esteve presente na vida de Solange. Mesmo em Curitiba, ela conta que já trabalhava, pois a família era muito humilde. “Na época, eu morava na favela e o Ceasa era perto, eu ia no Ceasa para carregar uma moedinha dos idosos e dava para minha mãe”.

Assim que chegou na casa de sua patroa em São Paulo, ela disse que começou a ajudar em trabalhos domésticos. Com o tempo as responsabilidades foram aumentando. Ela lavava, passava, cozinhava, cuidava da casa e no fim cuidou dos patrões que eram idosos.

Porém, nunca recebeu qualquer tipo de salário por isso. Aos 18 anos ela foi registrada como empregada doméstica para que o INSS fosse pago. Ela disse que na carteira possuía um salário, mas que o valor nunca chegou em sua mão, pois eram debitados descontos como convênio médico, objetos quebrados ou quando ela queria comprar algo, como por exemplo, um walkman e uma máquina fotográfica que guarda até hoje.

Solange guarda até hoje a caderneta onde eram feitos os cálculos de seu salário. “Uma vez eu quebrei uma jarra sem querer, foi lá no mercado e descontou R$ 3 de jarra. Manchei a calça branca, descontou R$ 42 de calça. Era tudo descontado, tudo o que eu quebrava era descontado. Nunca o dinheiro chegava na minha mão”, conta ela.

O que diz o advogado da família

Em entrevista, o advogado da família Carlos Eduardo Quintieri, disse que o registro se destinou à Previdência Social. “Ela teve um registro da carteira de trabalho dela quando ela completou 18 anos, mas esse registro foi para fins previdenciários. A preocupação da família era com o futuro dela perante a Previdência Social”, disse ele.

Quanto ao dinheiro, o advogado disse que Solange tinha acesso ao que queria. “Ela tinha dinheiro em mãos que ela podia comprar produtos de higiene, CD de cantor sertanejo que ela gostava, ela escolhia o que ela fazia com o dinheiro dela. Muitas vezes, ela pedia que fosse comprado, outras vezes, ela mesma adquiria, sem qualquer cerceamento por parte da família”, disse Quintieri.

Liberdade

Quando comenta sobre a sua saída, Solange diz “tudo poderia ter sido diferente”, para ela a conquista da liberdade se deu em um momento em que ela não aguentava mais as humilhações das netas de sua patroa, que já estava doente.

A decisão para deixar o lar em que morou durante 30 anos de sua vida, não foi fácil. Meses antes de ir embora ela guardava um celular em bolsinha e lá se comunicava com enfermeiros, fisioterapeutas e outros empregados de sua patroa com quem desenvolveu relações de amizade.

Uma dessas pessoas era a fisioterapeuta Suely Kanigai que prestou serviços para a família onde Solange morava durante 4 meses. A fisioterapeuta conta que durante os atendimentos Solange começou a contar sua história.

Solange decidiu sair de casa no dia em uma das netas de sua patroa a acusou de estar fazendo orgia com o enfermeiro que frequentava a casa. “A neta gritou que eu estava fazendo orgia dentro do quarto. Ela disse enquanto o enfermeiro estiver aí você não volta mais. E chamou o sobrinho dela”, conta Solange.

Para a mulher aquilo foi a gota d’água, ela deixou a casa durante a madrugada com a roupa do corpo e um walkman. “Eu chorei muito, chorei até ás 3h da manhã. Eu não esperava que fosse acontecer isso. Eu imaginei qualquer coisa, menos essa cena”, disse ela.

Assim que saiu da casa, Solange dormiu na casa de uma amiga e no dia seguinte procurou Suely. Ela ficou na casa da fisioterapeuta por 1 ano. Suely conta que ficou sensibilizada ao ver o modo como Solange chegou em sua casa. “Ela estava em choque, porque eu acho que nem ela estava acreditando no que tinha acontecido, que ela tinha tomado coragem de sair de lá, mas ela estava firme”.

Processo

Em uma mala trancada com cadeado Solange guarda parte dos trinta anos que viveu na casa da família. Entre os objetos, estão: sua cartilha, os bonecos de Zezé de Camargo e Luciano, um livro de receitas de uma novela que gostava, seus documentos, a caderneta com seus salários, fotos e um walkman. Todos esses objetos ela recuperou depois que saiu da casa em que morava.

Foi escutando o seu rádio que ela conheceu os advogados Estácio Moraes e Fernando Zanellato que falavam sobre Direito do Trabalho em um programa. Solange já havia passado por três profissionais que não acreditaram em sua história, até encontrar Estácio e Fernando.

Fernando conta que durante o programa Solange começou a mandar diversos áudios para o telefone divulgado, mas, como ele não podia ouvir naquele momento, ele pedia para ela escrever, mas ela continuava a mandar áudios e ligar para ele. Devido a insistência, ele resolveu ouvir a história da mulher.

“Eu pensei ou é grave ou é uma pessoa qualquer inventando, também de outro lado que inventam na sociedade e agendamos com ela aqui no escritório para fazer uma triagem”, conta Zanellato.

Os advogados contam que, em primeira instância, o juiz entendeu que não havia trabalho análogo ao escravo, mas, sim, um trabalho proibido porque Solange era menor de idade durante um período em que realizou o serviço.

Em segunda instância a decisão foi diferente “O Tribunal Regional de São Paulo através de três juízes, após analisarem todas as provas e todos os fatos, se convenceram da existência de um trabalho análogo ao escravo”, diz Estácio Moraes.

Indenização

O Tribunal fixou um valor de R$ 1 milhão de indenização que será pago em 21 anos. A decisão ainda cabe recurso ao Tribunal Superior do Trabalho. “Nós entendemos que os fatos e as provas não podem ser mais reexaminados o que pode ser discutido é em relação ao valor”, diz Estácio.

O advogado da família, Carlos Eduardo Quintieri, defende que nunca houve relação análoga à escravidão entre Solange e a família. Ele disse que a decisão é “injusta e divorciada da realidade dos fatos”. O advogado disse que a defesa irá recorrer da decisão.

Por Beatriz Magalhães — São Paulo – G1

Os comentários estão encerrados.

Abra o bate-papo
Fale agora com um advogado
Olá, como podemos ajudar?